domingo, 10 de abril de 2011

Glosas II

Minha sorte estava traçada
Desde o meu triste rebento:
Vagar de calçada em calçada
Sempre dormindo ao relento.
Os dias passando assim
Eu nem me dando por mim.
Se caio aqui e acolá
Fico quietinho, calado
E como um cão tolerado
Me deixam num canto ficar.

Só como o que jogam no chão
Mesmo assim só um restinho
Dessas sobrinhas de pão
Roídas por um ratinho.
Pode até ser estranho:
É que essas migalhas apanho
E acho que estou a roubar.
Mas como escondido, agachado
E como um cão tolerado
Me deixam num canto ficar.

E vago pra lá e pra cá
Sem ter ninguém que dê fé
E quer ver alguém me notar?
É quando tropeça em meu pé.
Mas segue e me deixa sozinho
Porque no mêi do caminho
Sou pedra pra se desviar.
Mas vou ficando apregado
E como um cão tolerado
Me deixam num canto ficar.

E fico em calçada de hotel
Caído em porta de bar
Embriagado em bordel
Deitado n'areia do mar
Também em banco de praça
Sozinho, tomando cachaça
Pr'essa vida suportar.
Me desculpando ao ser pisado
E como um cão tolerado
Me deixam num canto ficar.

Consta no espetacular livro POETAS ENCANTADORES do poeta e repentista Zé de Cazuza, que é do cantador repentista Manoel Xudu, poeta nascido em São José de Pilar - PB, em 1932, e falecido em 1985, esta espetacular sextilha:

Estou como um penitente
Que não possui um barraco,
Dorme à-toa pela rua,
Um gabiru fura o saco,
Quando recebe uma esmola
Ela cai pelo buraco.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

O Homem e o Passarinho



Perguntei a um cidadão:
-- Por que prende o passarinho
Que tinha toda a amplidão
E não vivia sozinho?
Não hesitou responder
E tentou me convencer
Disse: eu quis ser seu amigo
Pois joão-de-barro tem lar
Pica-pau onde morar
E eu lhe dei um abrigo.

E disse, sem dó no peito:
Passarinho é irracional
Não tem noção de direito
Não sabe o que é bem ou mal
Por isso não pode sofrer
Que seu destino é viver
Para entoar o seu canto
E se canta em sertania
Canta em gaiola sombria
Que em seu cantar não há pranto.

Disse mais: sou realista
Um passarinho desse jeito
Miúdo, que nem se avista
Tem seu espaço perfeito
Numa gaiola pequena
Então não posso ter pena
Pois lhe sendo superior
Um cabra dessa estatura
Eu vivo numa apertura
Avalie um bichinho sem valor.

Eu disse comigo, sozinho
Não quero ouvir mais um pio
Não do pobre passarinho
Mas desse sujeito sem brio
Que tem u’a mente tacanha
E u’a crueldade tamanha
Que desconfio que é loucura
Pois não é só ignorância
É despeito, é prepotência
E pra esse mal não há cura.

Suas razões são mesquinhas
Sujeito ruim e covarde
Pois não sabe que as avezinhas
Vivem só em liberdade?
Voando pelas colinas
Pousando em férteis campinas
Para catar alimentos
Bebendo em rios e lagos
Trocando entre elas afagos
Fazendo ninho pro’s rebentos.

Respeite a Natureza
Se guarda algum sentimento
Liberte-se dessa vileza
De passar seu sofrimento
A u’a criatura indefesa
Não queira que sua tristeza
Mate a alegria de um ser
Que vive livre, inocente
Voando, a espalhar semente
Que é pra isso o seu viver.

A Venda de Dona Ana

Na tabuleta da entrada
Da venda de dona Ana
Um letreiro diz assim:
Aqui nós vende banana
Pé-de-moleque, aipim
Abacaxi, cajarana
Alho, cuminho, alecrim
Aguardente de cana
E bolo feito por mim.

Inda tem na prateleira
Coisa que só pra vender
Sorda, refresco e cocada
Carne de charque, dendê
Leite de cabra, coalhada
E fulô de mussambê
Ciscador, foice, enxada
Coisas pra véi e bebê
Tem de tudo, falta nada.

Tem tanta coisa o balcão
Qu’inté se esqueço o que tem
Broa, nego bom, mariola
Cuscuz, milho seco e xerém
Boneca de pano e bola
Troço que entope o armazém
Penico mais caçarola
E ano que vem inda vem
Borracha pra meia sola.

Kisuco, sardinha na lata
Balinheira e anzol
Neocid, mata-barata
Bolacha, carne-de-sol
Coleira pra vira-lata
Bola de gude, iô-iô
Kitute, manteiga de nata
Pimenta do reino, jiló
E caderneta não falta.

E tem atrepado em riba
Mercadoria aos montão
Guardada mode faltar
Conga, precata ou botão
Fumo, farinha, cará
Gaiola de passo e alçapão
Oliado, mungunzá
Chapéu de couro, gibão
Ou rede do Ceará.

Don’Ana apois vende tudo
E a venda fica de esquina
Agúia e linha de cor
Corpete para menina
Puxa, alfinim, pão de ló
E bugiganga da China
Inté modes vende, doutor
E coisas que nem se imagina
Que se vê no televisor.

E tem tombém pra vender
Um mói de troço do sul
Pois essa venda é sortida
Entonce vende xampu
Sainha e blusa florida
E queijo com tapuru
Que vem de Minas, duvida?
E uns cachete no baú
Pra sarar dor e ferida.

E pode espiar se não tem
Tudo que tá arrolado
Tecido tergal e de brim
Brote, cocorote, beiju
Goma de tapioca, dindim
Castanha e mel de uruçu
Piaba do açude, toicim
Ribaçã, rolinha, nhambu
Né mentira não: tem tudim.

Um balai de miudeza
É o pau que mais tem acolá
Biscuí pra riba de mesa
Eu truxe e posso provar
Bule, espelhim de princesa
Jogo do bicho e bilhar
Pr’as noites com vela acesa
Só falta uns quartim no quintá
Mode fazer safadeza.

Glosas I

Minha existência foi vã
Caduca desde o início
Tirei a sorte malsã
Caindo de vício em vício
E assim morrendo vivi
Existir só existí
Porque Deus o consentiu
E da vida não me gabo
Pois existí como o rabo
Que do lagarto caiu.

Não conheço de fato
Quem, como eu, existiu
Se alguém viveu qual lagarto
A quem o rabo caiu
Ao menos teve uma vida
Inda que, em meio, partida
Mas fui o que Deus permitiu
Só em lembrar me acabo
Pois existí como o rabo
Que do lagarto caiu.

Ser rabo nessa existência
Sem ligação com a cabeça
É viver sem consciência
Sem nada de que se esqueça
Levando o tempo à-toa
Que o pensar mesmo destoa
Do que é só um rabo vazio
Tanto ri, que em mim não caibo
Pois existí como o rabo
Que do lagarto caiu.

Mote: "As mais bonitas palavras de amor são ditas no silêncio de um olhar"

Digo  'te amo' num beijo roubado;
E ainda o digo, se brigo contigo;
E estou a dizê-lo desde que a sigo;
Assim como ao abraçá-la apertado;
Mas também posso deixá-lo gravado,
Se queres prova para acreditar.
Mais a amarei, se quiseres me amar,
Com bem mais gestos e ações de valor.
Que as mais bonitas palavras de amor
São ditas no silêncio de um olhar.

Mote baseado literalmente num pensamento de Leonardo da Vinci.

Musa Cabocla

Zé Limeira me inspirou
E descobriu minha verve
Pr’eu glosar o meu amor
A sua musa me serve
Que ela verte poesia
Na mais perfeita harmonia
Com esta alma que escreve.

Eu pego da minha pena
Como ele pegou da viola
Desafiando esse tema
Com minha própria cachola
Se me zangar um pouquinho
“Mato você de carinho”
E volvo ao poeta essa bola.

É que em tema de amor
Tem de ser que nem criança
Sem malícia e sem temor
Amar é ter esperança
Ter saudade, ir se doando
Que “amar se aprende amando”
Diz Drumond com confiança.

E Zé da Luz, poeta crente
Na Serra da Borborema
Emocionou muita gente
Com um seu belo poema
Queria por derradeiro
Me inspirar no balaiêro
Pra ser livre, sem problema.

Quero ter simplicidade
Pisar descalço no chão
No manto da humildade
Envolver meu coração
“Se a alma não é pequena”
Que tudo valha a pena
Por uma grande paixão.

Que eu possa namorar
Teu retrato todo instante
Se a saudade apertar
Mesmo estando distante
Vou te abraçar com ternura
E tocar tu’alma pura
Com um beijo errante.

Vem morena do meu sonho
Vem viver juntinho d’eu
Que amar eu te proponho
Meu amor, não percebeu?
Pois que todo o mundo sabe
Que em meu peito já não cabe
Esse amor que é todo teu.

Não levaremo uma vida
De conforto nem carência
Mas te prometo, querida
Com um pôquim de paciência
Levantar nossa casinha
Parecida com uma lapinha
E nóis viver com decência.

Em meio à natureza
Vamo tomar banho no lago
Á luz de u’a estrela acesa
A gente se aquece no afago
Chupando fruta do pé
Na grama te dou cafuné
E em pensamentos divago.

Com uma flor no cabelo
E um chêirim de alfazema
És tão bela, e sem sabê-lo
És a própria Iracema
Os oínho nêgo de breu
“Virgem dos lábios de mel”
Tua beleza é um poema.

Quero te dar alegria
Em tudo te dar prazer
Se precisar vou pra pia
Dispois no fogão vou mexer
Um grande amor se constrói
Quando se óia nos ói
E pode neles se ver.

Quero contigo viver
Na paz do nosso ranchinho
E se argúem tiver de morrer
Que eu vá primeiro, benzinho
Mas queria envelhecer
Te oferecendo um buquê
Feliz por amar um anjinho.