terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A mão que nunca tocou








Na lei do bem me criei
Praticando a caridade
Esmola nunca neguei
Se era por necessidade
Sei que o bastante não dei
Mas dei de boa vontade.

Fui educado no mato
Sem notícias de jornal
Palavrão é desacato
Deve o bem vencer o mal
Vilanagem e boato
Correm só na capital.

Nessa inocência vivi
Até tornar-me homem feito
E quando meus pais perdi
E a seca não tinha mais jeito
Deixei o sertão e parti
Buscando um mundo perfeito.

E arribei do interior
Na asa branca da saudade
No peito um vazio, uma dor
Na mala muita humildade
Sonhando voar qual condor
Porém sem qualquer vaidade.

E pousei num arranha-céu
Da cidade de cimento
Pra cumprir o meu papel
Portando bom sentimento
Saí voando ao léu
Meio ao destino do vento.

Mas um alçapão me pegou
E logo perdi a razão
Alguém me aconselhou
Pr’eu fechar primeiro a mão
Não praticar o amor
E endurecer o coração.

Cidade grande é assim:
O egoísmo faz a lei
Levaram tudo de mim
Se a alma foi junto, não sei
E foi o começo do fim
Do bem moral que herdei.

Misto de medo, fraqueza
Sentimento de injustiça
Deixou-me então sem defesa
E a revolta e a cobiça
Sentavam à minha mesa
Pregando a um'alma noviça.

E me envolvi na miséria
Daquele inferno de Dante
A moeda deletéria
Com seu poder fascinante
Escravizando a matéria
Corrompe a alma da gente.

E fui me tornando “urbano”
Embrutecido, porém
E entre engano e desengano
Fui pra milícia também
E acabei como um tirano
Sem ter pena de ninguém.

O vírus da violência
Pegou da lei o soldado
A ninguém dava indulgência
Nem dava mais um trocado
Eu só tinha uma urgência:
Pôr os escrúpulos de lado.

*

Tal como a cristã igreja
Os órgãos de repressão,
Com exceções pra que se veja
Que é uma regra a marcação,
Pelos pobres -- Deus os proteja! --
Fizeram especial opção.

Sankara deixou sua crítica
Pro soldado universal:
Sem u'a formação política
E sem consciência social
Serás u'a mente raquítica,
Criminoso em potencial.

*

Da água pro vinho mudei
Deixei de crer no que eu cria
Dos pobres com quem cruzei
Muitos carentes eu via
Nos golpes que os flagrei
O mendigar se envolvia.

*

Os dias de pedir chorando
O peito para mamar
Pra muitos passam voando
Que o desmame é salutar
Mas pra alguns vão perdurando
Que  "outros peitos"  vão sugar.

Pedinte, esmoler e eu digo
Esmoleiro, pedidor
Lazarone mais mendigo
Sacomano, esmolador
Mendicante é bem antigo
Indigente, "empreendedor".

Na empresa de mendicantes
Tem o tal do "empreendedor"
Mais os pequenos meliantes
E um prestidigitador
Que vão pegar circunstantes
Com ares de bom humor.

A primeira regra então
É a que facilita o rolo:
Se o risonho cidadão
Pela cara diz que é tolo
Por causa de uma paixão
Ou um prêmio de consolo.

Aí aquele "ceguinho"
Que viu antes a sua presa
Ou aquele "aleijadinho"
Que o é só pra essa empresa
Já montou o teatrinho:
Pega bobo, com certeza.

São mesmo uns caras de pau
Pedintes profissionais
Pois fingem vestir-se mal
Mas não se enrolam em jornais
E é o lado emocional
Que vão explorar dos locais.

Vendo uma face bondosa
Finge uma crise que a oprima
Aproveita que é idosa
Pro bobo correr pra cima
E pelo que der à ociosa
Ou ela piora ou se anima.

Ninguém mais vê uma prata
Tilintando na bacia
Noutros tempos iam à cata
Do que no bolso cabia
Hoje, o triste é ver a mamata
De pedir pix pra Maria!

Explorando a mendicância
Tem muita gente mamando
É um crime contra a infância
Manter crianças ralando
Não deve haver tolerância
Com os que vivem abusando.

Por tudo que observei
Da ralé que assim agia
Logo generalizei
Que o preconceito já havia
E contra a esmola lutei
Por seguir u'a filosofia.

*

Diz radical pensadora:
Se eu deixar a opressão
Ainda mais opressora
A consciência do irmão
Desperta na mesma hora
Pra social revolução.

Se só u'a barriga cheia
Vale pouco ao cidadão
Imagine sem a ceia,
Sem um farelo de pão,
E quando a fome campeia
Na mente e no coração.

Se trabalho nunca rola
Pra quem está a depender
Dessas migalhas de esmola
Que se dá pro outro ver
Como na sua cachola
Não há de a mudança querer?

Aos mendigos sem esmolar
Isso pode acontecer
Se o político for enrolar
Com essa do "bolo crescer"
Vão querer mesmo é tomar
Tudo o que há urgência de ter.

Só discurso não mais cola,
Que é pra verdade esconder.
Pro mendiguinho: a escola
Pra em igualdade viver
Sem depender d'uma bola
Pro invisível aparecer.

Essa visão radical
E ética a se praticar:
Não dar o peixe ao pessoal
Mas instigá-lo a tomar
É o que é preciso, afinal
Pra ser autônomo e lutar.

Mas toda essa teoria,
Quem é doido pra aplicar?
Quem de frente bateria
Com as forças do lugar?
Dizer é fácil. Eu faria
O que afetava pregar?

*

As voltas que o mundo dá
Mudando a realidade
É para ninguém pensar
Que pode agir à vontade,
Que vai seu meio alterar
Sem enfrentar tempestade.

As coisas não são assim.
Pra mim não foi diferente.
Como um grande motim
Tudo ocorreu de repente
Das flores do meu jardim
Sobraram espinhos somente.

Já então prejudicado
Por ter feito má opção
Eu me via arruinado
Podendo perder o ganha-pão
Estava desesperado
Com essa bomba na mão.

Com medo de ir à falência
E procurando um culpado
Quis compensar a impotência
Descontando no coitado
Que mostra resiliência
Quando o mal tá consumado.

E pra vítima da carência,
Pro mendigo lá jogado
Fiz o mal com minha influência
Mas o mal volta dobrado
E, pressentindo a indigência,
Quis o pedinte finado.

Só que o espelho não quebrava;
Nele me vi com desgosto.
Quando um infeliz me abordava
Pedindo, eu virava o rosto
E dizia que não dava
Pra ninguém tomar o gosto.

E passaria por desculpa
Se eu não estivesse "de esmola"
Pois quem é que tinha culpa
Do abandono frente à escola
De criança que um peito chupa
Mais outra que cheira cola?

E todo dia eu passava
Na calçada da escola
A mesma criança mamava,
A outra cheirava cola.
A mãe a mão estirava
E eu dizia: não amola!

*

Será que a mãe escolheu
Ficar em frente à escola?
O que pra lá a moveu?
Foi ideia de sua cachola?
Mas a  'razão' do liceu
Podia encher sua sacola?

Se a barriga predomina
Sobre o cérebro da gente,
Uma escola que ensina
Nem passava por sua mente.
A realidade ela atina:
Matar fome é que é urgente.

Por que a mãe foi diferente?
O mendigo busca a igreja,
Senta lá em um batente
Para que o fiel o veja,
Tenha pena e, se é temente,
Dê-lhe uma moedinha que seja.

É comum jogar a moeda
Pois na mão não quer tocar.
Do dízimo o fiel não se arreda;
Só um cobre o pobre terá.
Dividir, a lei não veda
Mas tem amor no ato de dar?

Talvez inconscientemente
Quisesse expor lá sua dor --
Um quadro bem deprimente
De escandaloso pintor --,
Que estudante é um dependente
Inda olha empático, com amor.

*

Disfarçando, ia apressado
Mal via o coitado no peito
O outro caído do lado
A mãe dopada, sem jeito
O do seio só calado
O do solo sempre ao leito.

Se a cola mata o sujeito,
O álcool expõe a caveira;
Se amarga leite de peito
Sugá-lo – há quem o queira?
Pois, sem escolha, o do aleito
Por um tal peito morrera.

Outros excluídos passavam
E viam-se naquela vida
Como sofrentes, lhe davam
Um frasco de sua bebida
Pois também compartilhavam
De uma existência oprimida.

No álcool a mãe eu "ajudava"
Como a puxar o gatilho
E tanto a penúria espelhava
Que eu ria de mim: maltrapilho!
A mama depois consolava
O ardor na boca do filho.

*

Essa triste realidade
Cazuza bem o atesta.
Como o lado da maldade
No bom homem é descoberta?
No tipo de "caridade"
Que faz pra um que detesta.

*

Com o peito torturado
E um inútil gesto de mão
Com um ser moribundo ao lado
E outro rolando no chão
A mãe penava um bocado
E ainda eu zombava, irmão!

*

Pois é costume da gente
No trato do dia a dia
Dar tratamento decente
No meio da burguesia
Mas na frente de um carente
Age sem hipocrisia.

Jamais alguém diz na cara
Algo que é muito ofensivo
Sem razão não se escancara
Aquele lado agressivo
Mas se um pedinte o para
Nem precisa de motivo.

Dizem que em Copenhague
Há um mendigo corcundo
Que quando diz  "Deus lhe pague"
Logo o chamam vagabundo.
Deus não faz nota que rasgue
Nem deve a ninguém no mundo.

E o mendigo diz pra si:
Livre estou da hipocrisia
Ninguém mais pra mim sorri
Nem dá um falso bom-dia
E se dá-me o que pedi
É pra ostentar  "empatia".

*

Mas essa atitude usei
Antes do emprego perder
Que os meus valores troquei
Pra em sociedade ascender
Só que jamais eu pensei
Ser descartável ao poder.

*

De um pobre tire a ajuda
Pro esmoler aparecer.
Não terá quem o acuda
Quando o que tinha perder
E não há quem se iluda
Que é a rua que o vai acolher.

Pois todo pobre é, no fundo,
Mendigo em potencial
Pode ocorrer num segundo
De perder tudo e o moral
E é muito pouco, no mundo,
O que possui, afinal.

*

Pra subir o morro a pé
Tem que ter muita canela
O pobre diz que tem fé
De sair dessa esparrela
E até a gente ralé
Sonha deixar a favela.

Não fosse o estreito barraco
Pra repousar o esqueleto
Talvez dormisse num saco
Vizinho a outro sem-teto.
Como tatu em buraco,
Pobre se esconde em seu gueto.

Na subida o santo acuda
Quem for por beco e viela.
Se é faminto, o pobre ajuda
Pondo água na panela
Mas pra o morro não se muda
Quem não tem uma ruela.

Quem vive lá quer sair
Descer o morro na banguela;
E o mendigo quer subir
Quer ter ali sua janela.
O sonho de um é partir;
Do outro, é morar na favela.

*

A elite dominante
De pobres sempre precisa,
Quer pro trabalho importante
Quer para o dos sem-camisa.
Sem dar condição decente
Seu projeto os precariza.

De miseráveis depende
Seu projeto de poder.
Então o pobre se vende,
Que nada pode fazer.
A más condições se rende
Temendo o emprego perder.

O indigente existir
É pro trabalhador ver,
Se calar, não resistir,
Não protestar, se conter;
Assim ele vai agir
Por a miséria temer.

É uma estratégia a indigência,
Uma construção social;
Foi coisa da  'Inteligência' --
Domínio do Capital.
Pra ameaçar com essa falência,
Impor medo é essencial.

*

A dor dessa decepção
Foi que salvou minha vida
Pois curei meu coração
Tendo a sorte dividida
Com quem me dava do pão
Que ia faltar-lhe pra lida.

Aí voltei ao normal
Sem de mim mesmo fugir
Estamos na mesma nau
Na luta para existir
Todo pobre vive mal
Só que uns precisam pedir.

*

Esmola pra São José!
Pedindo de porta em porta
O mendigo andava a pé
Com u'a banda meio morta
Levava os fí. E a mulé
Com um bucho enorme ia torta.

A gente dava o que tinha
Às vezes um pão dormido
Ou uma cuia de farinha.
Isso era bem recebido
Pois, sem dar queixa à vizinha,
Via que ele era agradecido.

O tempo tudo mudou
Criou mais necessidades
Custo de vida aumentou,
Até os muros nas cidades
E o pobre se acostumou
Com os tostões das caridades.

Pedir, sempre é precisão
Naquele tempo era mais
Calças presas por cordão
Camisas rotas demais
Se contentavam com um pão
De sete dias atrás.

Nos bairros é que se via
O coitadinho a pedir
Ora em um terraço dormia
Por muros não existir
E o proprietário sabia
Que em nada ele ia bulir.

Vivia nessa dependência
Porque era abandonado
Ou porque tinha u'a demência
E dos seus era afastado
Ou tinha muita carência
E sem ajuda do Estado.

Hoje o mendigo é da praça
Mas pode dormir no abrigo
Vai ter comida de graça
E roupa de oculto amigo
Um Estado que o abraça
Com um 'bolsa auxílio' exíguo.

Se o níquel que se pedia
Não circular mais na praça,
Como o pedinte faria
Pra sobreviver, na raça,
Sem sua única alegria
Que é a que lhe dá a cachaça?

Como aguenta o dia inteiro
Ficar assim sem fazer nada?
Nem formiga em formigueiro
Não pode ficar parada.
Se o índio quer um sombreiro
Só depois de uma caçada.

Dá pena ver o mendigo
Parado e a língua pregada
Sem um ouvido amigo
Nem pra ouvir u'a resmungada
Porque já disse consigo:
'Sou só coisa descartada'.

Como sobrevive então
Com toda essa letargia?
Sem tocar um violão
Sem ler livro de poesia
Sem habilidade com a mão
Sem um talento que cria?

No meio de tanto prédio
Quando o vazio o tortura
Haverá talvez remédio?
E quando o oprime a tontura
No precipício do tédio
A cura não é a loucura?

Quão cruel é a solidão
Nessa sua vida vazia!
Mas ver roerem seu pão
Dá-lhe tipo uma alegria,
Que até um rato ladrão
Ilumina o seu dia.

Não falo só do indivíduo
Sem direitos nem vontade,
Do mendicante impolido
À margem da sociedade
Mas de um ser destituído
De sua própria humanidade.

O que a falta de empatia
E a guerra fazem é sem nome
Já o capitalismo cria
Um grupo que não consome:
Párias para a economia.
E tudo resulta em fome.

U'a chaga da sociedade
Que em dez mil anos não some
Fruto da desigualdade:
Haver quem esmola consome.
Se a dessem só por piedade
Mendigos morriam de fome.

Quando aos pobres dá o pão
Só estando a ser realista
Chamam a Dom Hélder de 'São'
Mas se a perguntar insista:
Por que é pobre o nosso irmão?
Então vira um comunista.

Um anagrama pra  'argentino'
Tem a ver com o governante
Que apoia o desatino
Da elite dominante
Que dá desprezo ao destino
Do pobre do mendicante.

Uns dizem para não dar
Que esmola só vai fazer
Ou o infeliz se drogar
Ou se danar a beber
E o preconceito é julgar
Pela aparência que vê.

Não importa se é real
Ou se estão a fingir
O risco é alto e mortal
Se eu não der pra quem pedir
É um compromisso social
Que devo mesmo assumir.

Mendigo vem de 'mendicus'
Do latim e se perpetua.
Por conta de haverem ricos
Essa é, pois, a sorte sua.
Se é preconceito e traz riscos
Diga: em situação de rua.

'Mendigo', embora usual,
É um termo estigmatizante.
Foi contravenção penal
O que faz pedinte errante
Mas pede na rua igual
Aos da Ordem Mendicante.

*

A criminalização
Da mendicância é histórica
Nasceu da preocupação
Ante a negraria eufórica
Pela sua libertação
Após resistência heroica.

Mas em vez de ser tratada
Como um problema social
A mendicância era olhada
Só sob o aspecto penal
Era um perigo e apontada
Como pré-delinquencial.

Por isso, a Lei Criminal
Do Império do Brasil
E o Código Penal
Da República Civil
Puniam de maneira igual
O mendigo e o vadio.

O sistema escravista
Por lei, mendigo oprimia,
Controlava-o e, se ativista,
Disciplinava e punia,
Que era preto e, pro racista,
Não merecia alforria.

U'a razão pra desavença
Contra mendigo e vadio
Era que só sua presença
Negra e em público era hostil
Havia o preconceito e a crença
Qu'inda livre, era ser(vil).

Para a elite, os ex-escravos
Metiam um medo infernal,
Que um século sofrendo agravos
Faria-os vingar-se, afinal,
Por vadios, mendigos parvos,
Que era a "galera do mal".

Nossa lei punia o  "opróbrio"
De alguém não ter um abrigo!
Se o imperador não foi sóbrio,
Deodoro disse: eu o sigo
Mas puno mendigo e ébrio;
Punias vadio e mendigo.

Em governo popular,
Vargas não conteve a ânsia
De descriminalizar
Vadiagem e mendicância
Mas a elite, pra implicar,
Retornou com a vigilância.

A lei da contravenção,
Reimplantou essas condutas.
Prevendo a simples prisão,
Cedeu um pouco às lutas
Dos que tinham outra visão:
Não ser obrigado às labutas.

Mendigar por cupidez
Ou por ociosidade
Dava pouco mais de um mês
Privação da liberdade
O Estado Novo só fez
Compreender a realidade.

Contraventor mendicante
Só era preso, com enxovalho,
Se ele, habitualmente,
Sendo apto pro trabalho,
Vadiasse publicamente,
Pouco ligando pra um ralho.

Tanto tinha a ver com o trabalho
E as ordens do capital,
Que viver a jogar baralho
Junto a um grupo marginal,
Mas tendo renda e cascalho,
Era uma conduta legal.

Mas essa contravenção
Custou a ser revogada,
Depois de muita prisão
Injusta, inútil e enfrentada,
Pois mendicância é a opressão
E já é pena aplicada.

*

Ao dar esmola, eleja
Pôr por baixo da prancheta
Que a mão esquerda não veja
O que faz a sua direita
Mais um hipócrita não seja
Anunciando-a com trombeta.

Lucas diz que Bartimeu,
Um mendigo sem visão,
Pediu pra sair do breu
Por um milagre cristão
'Foi sua fé que lhe valeu'
Jesus disse a seu irmão.

Jesus disse: tive fome
E alguém me deu de comer
Tive sede, e um disse: tome
Que isso é água de beber
Dando a um mendigo sem nome
Dá a Jesus -- pode crer!

Qual a função da esmola?
Nunca ouvi nem dos meus pais
Jamais soube na escola
Mas dizem os cardeais
Que é o desapego que rola
Aos teus bens materiais.

Então deixa eu dar um toque
Vais ficar em paz contigo
Um tratamento de choque
Pra mudar tua vida, amigo
Faça como em Nova Iorque
Também adote um mendigo!

Não os mendigos de afeto
Vistos em todas as luas
Do pão do amor -- não de um teto
Andam carentes nas ruas
E serão, no papo reto,
Duvidosas as paixões suas.

*

Se alguém vem na contramão
Em plena luz matinal
Com uma lanterna na mão
Procurando um ser normal
Que é um honesto cidadão
Já o internam no hospital.

E se diz que não precisa
De emprego para viver
Nem de uma rota camisa,
Basta uns panos sem coser
Você diz: Ah uma pisa,
Pra arranjar o que fazer!

E se essa for sua vontade:
Viver como os animais
Tendo toda a liberdade
Sem preocupar-se jamais
Quem é dono da verdade
Pra condenar o que ele faz?

Esse é o caso de um grego
Diógenes se chamava
Filósofo e sem emprego
Num barril ele morava
Mas nunca pediu arrego
Era mendigo e bastava.

Vivia na extrema pobreza,
Que é apreciável virtude.
A verdadeira nobreza
É tomar essa atitude
Desejar é que é fraqueza
Bom é ser livre com saúde.

Buscava o seu ideal
De ser autossuficiente
Nu'a vida bem natural
Bastante simples, decente
Sem posses, sendo frugal
Honesto, sóbrio e contente.

Cria piamente que a virtude
É revelada na ação;
Que só teoria nos ilude;
Prática é conscientização.
Pra viver na plenitude
Viveu sua revolução.

Lutou e viveu feliz
Em campanha ininterrupta
Contra as instituições vis
De u'a sociedade corrupta,
Com seus valores hostis,
Individualista e bruta.

Os cães, tanto os elogiava
Que vivia tal como um
Porém, ninguém o insultava
Com os cães tinha muito em comum
Com esses amigos andava
Dividindo o desjejum.

Os humanos vivem u'a vida
Hipócrita e artificial
Levam uma vida sofrida
E isso não é normal
Vejam os cães em sua lida
Vivem o hoje, com o vital.

Qualquer coisa come um cão
E dorme em qualquer lugar
O amanhã existe não
O tempo é o presente e é já
Também não tem precisão
Do irreal pra especular.

Ao contrário dos humanos,
Que enganam e são enganados
Os cachorros passam os anos,
Mesmo sem ser adestrados,
Fiéis e leais aos manos.
Quem são os civilizados?

*

Mas as Ordens Mendicantes
Podem causar estranheza.
Como um frade rico antes
Faz um voto de pobreza?
Por que seus anos restantes
Quer passar nessa dureza?

Pra tomar tal decisão
A base é a filosofia
Pra do conforto abrir mão
O homem se voluntaria
De ser pobre faz a opção,
Que doações o manteria.

Talvez daí é que vem
O "é dando que se recebe"
São Francisco doa o que tem
Em benefício da plebe
E o povo, grato, o mantém
Que ele também come e bebe.

E diz o Papa Francisco --
Jorge Bergoglio se chama:
Nada tenho, e devo ao Fisco
Nada ganho por ter fama
Me dão de comer e arrisco
Pedir mais sem fazer drama.

O Santo Padre -- atenção! --
Não faz um sincericídio:
Não é em troca de bênção
Que os padres pedem subsídio.
Também carece de pão
A igreja de santo Egídio.

Não do pão da eucaristia
Que é pro espírito alimentar
Mas do pão da padaria
Que é o dízimo que vai pagar
E do pão da especiaria
Pra agradar o paladar.

O dízimo dado à igreja
É um eufemismo pra 'esmola'.
Se não acha, é porque, veja,
Vira de neve uma bola.
De prata em prata se almeja
Encher um mundo de sacola.

Diz mais Fernando Pessoa,
Que lá atrás um dia elege
Um indigente de Lisboa
Como alguém que se inveje:
"Só por não ser eu, na boa
Invejo o mendigo herege".

*

Alexandre, o Grande, tenta
Mas Diógenes diz: não amola
Te afasta um pouco ou te senta
Pro sol pegar minha cachola.
Se vem com o que me alimenta
Vai pensar que me controla.

Mesmo com o êxito obtido
Por ter tido o rei um norte
No fim, estará tão perdido
Como o mendigo sem sorte
Depois que houverem partido
Os dois se igualam na morte.

*

Pois u'a cruel realidade --
Que toma u'a mãe por vadia;
Diz que a miséria, em verdade,
É culpa de sua apatia --
Jogou-me ao rosto a verdade
De cujo espelho eu fugia.

E vi a criança caída
Se contorcendo no chão
Por outros já esquecida,
Que não lhe deram atenção
Pois tinham pressa na vida
E alguém lhe daria u'a mão.

*

A Justiça então passou
Com a viciada balança.
Depois que ela julgou
Culpada aquela criança
Foi só mais u'a que mandou
Fichar na Vara da Infância.

Um doutor ali presente
Elaborou Parecer:
O que deve ser urgente
É u'a droga prescrever
E saber do dependente
Se comprou ou é pra vender.

Um ricaço lá passando
Desviou-se da calçada
"Não vou estar ajudando
Porque a grana tá aplicada"
Mas se o sovina, acenando,
Já dá tchau de mão fechada!

Um dito religioso
Passou naquele momento
E vendo o quadro horroroso
De suplício e sofrimento
Fez um ritual tenebroso
De descarrego e unguento.

Até um vereador
Em campanha no lugar
Ao potencial eleitor
Pensou logo auxiliar
Mas desistiu do "favor",
Que nele não iam votar.

Um tal d'um influenciador
Montou um 'ao vivo' ali
E transmitia toda dor
Que acometia o guri.
Bem falante, sem pudor,
Já acostumado e a sorrir.

*

Quem a fez sacrificar-se?
Por que tanta humilhação?
A mãe não pode indignar-se:
Ou pede respeito ou o pão.
Mendigar é despojar-se;
Da dignidade abrir mão.

Foi mendigo o bisavô
Seu avô foi um ninguém
O que o pai dela herdou
Não dava nem um vintém
E a vida que a mãe levou
Foi de mendiga também.

Essa mãe não estudou
Não sabe escrever nem ler
O jogo com que brincou
Nunca ela pôde entender
Se perdeu ou se ganhou,
Teve ou não o que comer.

É um jogo que se aprende
A só com a sorte contar
Quem joga sempre depende
Do outro para ganhar
Mas toda vez se arrepende
Mesmo que ganhe, é azar.

Porque ganha um pão mofado
Ou uma sopa minguada
Às vezes um misturado
Cheirando igual a coalhada
A contragosto ofertado
Pra deixar mais humilhada.

Nesse jogo de pedir
Bastava estirar sua mão
Não precisava exprimir
Nem uma palavra não
O seu corpinho de faquir
Já estava pedindo pão.

E o que caía em sua mão
Era mais coisa atirada
O jogo pra ela, então
Era agarrar a  'parada'
Muita vez um pacotão
De lixo d'uma privada.

*

A mão que pode limpar,
Que pode lavar, torcer;
A mão que pode passar
Para vestir e envolver;
Sem teto pra labutar,
O que a mãe pode fazer?

A mão que é para plantar,
Para regar e colher;
A mão que é para caçar,
Para tosar e tecer;
Sem terra pra trabalhar,
Como essa mãe vai viver?

A mão que fixa em pronar
Para dar, distribuir
Evitando supinar
A não ser pra repartir,
Como a mão pode mudar,
Já viciada em pedir?

A mão que é pra socorrer,
Para cuidar e salvar;
A mão que vai soerguer
Quem cai e quer levantar,
Como a mãe pode se erguer,
Sem razões para lutar?!

*

Eis que pausaram os tormentos
Quando ela tombou ao chão
Desmaiou com os sofrimentos
Que lhe partiam o coração
Ninguém ouvia seus lamentos
Não davam a mínima atenção.

Sonhara que eram portentos
Da divina Criação
Que seus filhos tinham talentos
Que orgulhavam a nação
E fruíam os alimentos
Que há num banquete cristão.

Despertou, e os músculos lentos
Não a ergueram do chão
Cansaram dos movimentos
Com tanta repetição,
Dos tão frustrantes momentos
Alçando e baixando a mão.

Revia ainda fragmentos
Do sonho que a içou do chão
Quando, desperta com os ventos
Que a puxava pela mão,
Súbito viu os elementos
De sua grande decepção.

Ao ver uns restos nojentos
Ao redor de "seu quinhão"
Seu sonho e seus desalentos
Provocaram um efeito, irmão:
Dobraram os padecimentos
De sua triste situação.

Por alguns poucos momentos
Não creu naquela visão
Mas o choro dos rebentos,
Pondo fim à sua ilusão,
Agravou seus sentimentos
De desespero e aflição.

*

Um dia cedo ela acordou
Que a fome faz grande alarde
E nessa manhã flagrou
Um ratinho bem à vontade
No seu peito se aninhou
Por sentir afinidade.

Mas sendo ele perturbado
Saiu logo em disparada.
Ela rindo, ele assustado.
"Tolo! Com medo por nada...
Sou um ser tão desamparado
Quanto tu nesta calçada!"

"Seria mesmo uma vergonha
Que eu não o deixasse ileso,
Uma covardia medonha
Sendo eu um ser tão indefeso.
Se um seio serve de fronha
Fui útil -- sem ser só um peso..."

Sentiu com o rato agoureiro
Que, quando se cai demais
E pra rato é um travesseiro,
A morte, a sorte é que a traz
Pro fim do despenhadeiro,
De onde não se afunda mais.

*

A outra criança -- a de braço
Pálida que nem um anjo
Em vão sugava o bagaço
Deixado por um marmanjo
Que, ao vê-la ali no regaço,
Disse: "Agora é que eu me esbanjo".

Vi que o anjinho quase riu:
'Gioconda' mais acanhado.
Mas, triste, a flor não abriu
A flor do riso abortado.
E o remorso me acudiu
Pra me evocar o passado.

Eu vi um toco de vela
Luz fraca, bruxuleando
No breu dos olhinhos dela
A chama bamboleando
O fogo da vida nela
Que estava se apagando.

A flor do riso inocente
No olhar, ia desabrochar
Não vingou, porque temente
D'um olhar que a fosse pisar
E vi um olhar sorridente
Na flor da vida fechar.

Sim, ela ia rir no olhar!
A criança em mim é que viu
Pra logo após se apagar.
Pensei até que dormiu
Porque parou de chuchar
O seio que nunca a nutriu.

Quando voltei ao local
Querendo então ajudar,
A do chão passava mal,
A mãe idiota a olhar.
Na do peito um sepulcral
Silêncio eterno a embalar.

Libertação abençoada!
Foi o Divino Socorrista
Que livrou a bebê finada
Do inferno capitalista.
Mesmo tarde, é "abortada"
Que a miséria é fatalista.

A mãe recolheu sua mão
Que a minha tocar não ousou.
Olhava vazio pro chão
Do chão o olhar não tirou.
Talvez esperasse em vão
A mão que nunca tocou.

*

Em casa de mendicante
E de menino de rua
Sob o céu do astro minguante
Naquela calçada nua
Quem dorme no último instante
É quem apaga a lua.



Campina Grande-PB, 1 de fevereiro de 2011.


Minha homenagem a este amigo de infância, in memoriam.

Comentário de Romero Borges:

Eita poema arretado
Duvido que foi plagiado
Sou amigo do autor
É um cara bem dotado
Não pensem que é zombaria
É apenas uma cortesia
De um fã admirado.

*

Meu coração é o mendigo
Mais faminto do Haiti
Mas é daqueles, amigo
Que nada pede pra si
Prefere o frio de um jazigo,
Morrer de fome a pedir.

Um comentário:

Romero Borges disse...

Eita poema arretado
Duvido que foi plagiado
Sou amigo do autor
É um cara bem dotado
Não pensem que é putaria
É apenas uma cortesia
De um fã admirado.
Romero Borges